quarta-feira, 8 de julho de 2009

Dúvidas e esperança

Neste universo humano, onde devo adequar-me ao estabelecido, para ser normal, nem sempre a aridez decorrente deste esforço sede lugar à criação.
O atelier me acolhe, diariamente. É o meu refúgio habitual. Mas, às vezes o processo criativo é demorado. O pensamento se enevoa ou se dispersa sob qualquer pretexto. Fica opaco. Nesse período lembro-me, imediatamente, de Fernando Pessoa: “Vem (Noite) lá do fundo do horizonte lívido. Vem e arranca-me deste solo de angústia e de inutilidade onde vicejo” – (Ode à Noite). E leio poesia, ou escrevo. E isso me revigora.

Às vezes permaneço assim, por muito tempo. Então, se surge algo (mesmo aparentemente insignificante), e, se pressinto nele a existência de um ponto de partida, detenho-me atenta e curiosa. Investigo. Então começo a pensar na possibilidade de, a partir daí, criar alguma coisa e, consequentemente, ser feliz.
Inicio, assim, a semana: Com dúvida e esperança. Inicio igualmente assim, o meu trabalho de pintora. Quando acontece a criação, naquele momento exato da criação, aí sim, eu me sinto forte e quase poderosa... Essa é a única hora em que sou realmente feliz e íntegra. Sendo assim, será que eu pinto somente para ter a sensação de poder e felicidade? Sabe lá Deus!

Dos livros eu gosto do mistério. Mas gosto, sobretudo, da beleza só alcançada através das palavras sabiamente organizadas sob o comando da razão e da emoção. Palavras simples, mas libertas pelo olhar arguto do escritor. Libertas de todo preconceito ou de padrões pré-estalelecidos. Palavras transmudadas em poesia, em beleza. Palavras revestidas de força e de sensibilidade. Palavras, enfim, que expressem idéias, sensações e emoções, únicas do autor diante do espetáculo do mundo e, que elas sejam a sua cara...
Penso que é exatamente isso que procuro encontrar, quando escrevo. São essas qualidades que eu almejo alcançar, quando pinto.

Ao organizar (racional e emocionalmente) idéias, formas, cores e matéria sobre uma tela, eu tento alcançar na pintura, o que eu entendo por mistério e por beleza. E para isso, o único caminho que conheço, está na LIBERDADE.
Trabalho no sentido de transfigurar a realidade, (todas as realidades) – por mais árida que ela se apresente. Por pior que ela seja realmente. Como todo artista eu tento percebê-la sob um véu imaginário. Um véu poetizante. Faço isso correndo todos os riscos, sem medo de me aventurar, duvidando do pré-estabelecido, ou do que determina a moda ou a crítica vigente... Duvidando até de mim mesma ou do que poderia ter sido um dia, minhas sólidas convicções a respeito de tudo... Criar é como um salto no escuro, como um esporte radical: provoca o mesmo frisson. Por isso, cada quadro é uma aventura nova, uma experiência nova, um novo e emocionante salto pra dentro da vida. Pintar é um contra-senso... Talvez seja esta a minha definição afetiva e ideológica da pintura.

Quase nunca encontro interesse na paisagem. Quanto maior sua beleza natural, menos ela me interessa como tema da pintura. A contemplação de seus encantos me basta. Mesmo assim, se prolongada, beira o tédio... A geografia humana, esta sim, me interessa e atrai. Ela é o mote do meu trabalho. È misteriosa, instigante e louca... A condição humana me interessa, acima de qualquer outro assunto. As contradições da alma humana – esse balançar como um pêndulo entre o bem e o mal, o sagrado e o profano, a grandeza e a mediocridade, o equilíbrio e a loucura, o sim e o não - me emocionam e instigam! Eu sou isso. A dialética decorrente disso tudo me fascina e inspira.

Através da Arte, procuro o imponderável: algo surpreendentemente belo, que me mate de prazer!
Guardadas as devidas proporções poderia até comparar esse prazer almejado, ao prazer de degustar um raríssimo vinho, em companhia de alguém de alma igualmente raríssima. Ou o de receber uma carta com uma declaração de um amor avassalador e real. Viver tudo isso deve ser um céu!
Mesmo assim, penso que o prazer de realizar uma grande e verdadeira obra de arte seria imensamente superior a qualquer um desses prazeres humanos imaginados por mim. Provavelmente, nunca alcançarei nenhum deles, pelo menos na sua totalidade, muito menos o maior de todos. Daí essa angustia, essa ansiedade, esse silêncio aterrador e interrogativo nos meus ouvidos.
Mas não me sinto uma aberração por carregar comigo esta insatisfação sem remédio. Creio que esse tipo de angústia é real em todo artista verdadeiro. Um artista verdadeiro é o que eu sinto que sou malgrado meu pessimismo avassalador.


Mariza Trancoso












































































5 comentários:

  1. Querida Marisa, que prazer imenso poder outra vez acompanhar teus pensamentos e apreciar tua pintura maravilhosa. Estou emocionada.
    Renata Peters

    ResponderExcluir
  2. Olá Renata!
    Que prazer ser "descoberta" por vc. Obrigada pelas palavras generosas e pelo carinho.
    meu email: marizatrancoso@hotmail.com.
    Vamos conversar mais?
    Beijo
    Mariza

    ResponderExcluir
  3. Mariza!!
    Eu sou lenta demais e só hoje reparei que vc respondeu ao meu comentário! Vou te mandar um email da minha conta particular.
    Feliz 2010 e beijos
    Renata

    ResponderExcluir
  4. Poxa,se eu já era sua admiradora,agora mais ainda,porque vi os seus escritos e descobri que vc escreve tão bem quanto pinta!!!
    Seu depoimento sobre Goya está lindo e eu me lembrei de um momento emocionante em que eu entrei na sala especial dele no Prado em Madri e desabei num choro do qual até me envergonhei!
    Estou cada dia mais feliz nesse Facebook que tem me aproximado de pessoas tão bacanas!Um beijo carinhoso!

    ResponderExcluir
  5. Marisa querida. Conheço um pouco de você, convivemos durante anos no trabalho e nas buscas de entendimento por intermédio da arte. Começar a semana com dúvida e esperança é seguir aquele itinerário de busca de auto conhecimento. Quando você trabalha sua pintura, você se joga nas questões do grande mistério da existência e questiona e busca e se emociona com as próprias conquistas na tela. A gente também se emociona porque de uma forma ou de outra, todos buscamos respostas. E tem a paixão, a indignação, a verdade crua sob o vigor de suas pincelads, a matéria vibrante e os temas atemporais. É preciso coragem e talento para o desnudamento que a criação de uma obra demanda. Você mergulha as unhas no próprio coração na busca de respostas que os seus quadros vão trazendo e nós meio bobos ficamos assistindo à coexistência de opostos inerentes à condição humana sendo desvelada por seus pincéis e sua sensibilidade. Não falei tudo, mas paro por aqui. Seu blog aulas de arte/vida. Beijo.

    ResponderExcluir